terça-feira, 17 de junho de 2008

A velha Izerguil

Calou-se. Eu estava triste ao lado dela. Ela sonhava, abanava a cabeça e murmurava baixinho... talvez rezasse.

Do mar subia uma nuvem, negra, pesada, de contornos severos, semelhante a uma crista de montanha. Avançava rastejando pela estepe. Do cume destacavam-se farrapos que a precediam e apagavam as estrelas uma após outra. O mar bramia. Perto de nós, nos vinhedos, ouvia-se o ruído de beijos e suspiros. Na profundidade da estepe, uivava um cão... O ar irritava os nervos e as narinas, carregado de um perfume estranho. As nuvens atiravam para a terra sombras densas que rastejavam, rastejavam, desapareciam, reapareciam. No lugar da Lua apenas se mantinha uma mancha baça, cor de opala; de vez em quando, um pedaço de nuvem azulada escondia-se completamente. E no horizonte da estepe, agora negra e assustadora como se se dissimulasse ou escondesse um segredo, acendiam-se minúsculas luzes azuis. Ora aqui, ora ali, apareciam durante uma fracção de segundo e extinguiam-se, como se alguns homens esparsos pela imensidão da estepe procurassem qualquer coisa, acendessem fósforos imediatamente apagados pelo vento. Eram estranhas línguas de fogo, azuis, que faziam pensar em qualquer coisa de fabuloso.

- Estás a ver as fagulhas? - perguntou a velha Izerguil.

- As azuladas? - disse eu, apontando para a estepe.

- Azuladas? Sim, é isso... Quer dizer que continuam a voar. Eu já não as vejo. Já não posso ver muita coisa.

- De onde vêm elas? - perguntei.

Eu já conhecia relatos sobre a origem daqueles fogos-fátuos, mas queria ouvir o conto que a velha Izerguil faria sobre aquilo.

- Aquelas fagulhas vêm do coração ardente de Danko. Houve uma vez um coração que um dia pegou fogo. É dele que saltam fagulhas. Vou-te contar essa história. É uma velha lenda. Mais uma velha coisa; quantos tesouros havia nos tempos antigos, estás a ver?... E agora, nada, nem acções, nem homens, nem contos, como nesse tempo. Porquê? Responde, se és capaz. Não há resposta. Sabes lá? Que sabem vocês todos, rapazes novos? Eh, eh! Se olharem bem para o passado, verão que se encontra lá resposta para todos os enigmas... Mas vocês não olham e é por isso que não sabem viver. Achas que não vejo a vida? Vejo tudo, embora os meus olhos sejam maus! E vejo que os homens não vivem, passam o seu tempo a prepararem-se para agir, sem realmente agirem nunca; e gastam nisso toda a sua vida. Quando se roubaram a si próprios, esbanjando o tempo, põem-se a choramingar sobre o destino. Mas o que é o destino? Cada um é o seu próprio destino! Vejo toda a espécie de pessoas, mas não vejo pessoas fortes. Onde estão? E os belos homens são cada vez mais raros.

quarta-feira, 5 de março de 2008

Conto para minha morte (raul)


Eu sei que determinada rua que eu já passei
Não tornará a ouvir o som dos meus passos.
Tem uma revista que eu guardo há muitos anos
E que nunca mais eu vou abrir.
Cada vez que eu me despeço de uma pessoa
Pode ser que essa pessoa esteja me vendo pela última vez
A morte, surda, caminha ao meu lado
E eu não sei em que esquina ela vai me beijar

Com que rosto ela virá?
Será que ela vai deixar eu acabar o que eu tenho que fazer?
Ou será que ela vai me pegar no meio do copo de uísque?
Na música que eu deixei para compor amanhã?
Será que ela vai esperar eu apagar o cigarro no cinzeiro?
Virá antes de eu encontrar a mulher, a mulher que me foi destinada,
E que está em algum lugar me esperando
Embora eu ainda não a conheça?

Vou te encontrar vestida de cetim,
Pois em qualquer lugar esperas só por mim
E no teu beijo provar o gosto estranho
Que eu quero e não desejo,mas tenho que encontrar
Vem, mas demore a chegar.
Eu te detesto e amo morte, morte, morte
Que talvez seja o segredo desta vida
Morte, morte, morte que talvez seja o segredo desta vida

Qual será a forma da minha morte?
Uma das tantas coisas que eu não escolhi na vida.
Existem tantas... Um acidente de carro.
O coração que se recusa abater no próximo minuto,
A anestesia mal aplicada,
A vida mal vivida, a ferida mal curada, a dor já envelhecida
O câncer já espalhado e ainda escondido, ou até, quem sabe,
Um escorregão idiota, num dia de sol, a cabeça no meio-fio...

Oh morte, tu que és tão forte,
Que matas o gato, o rato e o homem.
Vista-se com a tua mais bela roupa quando vieres me buscar
Que meu corpo seja cremado e que minhas cinzas alimentem a erva
E que a erva alimente outro homem como eu
Porque eu continuarei neste homem,
Nos meus filhos, na palavra rude
Que eu disse para alguém que não gostava
E até no uísque que eu não terminei de beber aquela noite...

Vou te encontrar vestida de cetim,
Pois em qualquer lugar esperas só por mim
E no teu beijo provar o gosto estranho que eu quero e não desejo,mas tenho que encontrar
Vem, mas demore a chegar.
Eu te detesto e amo morte, morte, morte
Que talvez seja o segredo desta vida
Morte, morte, morte que talvez seja o segredo desta vida

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Sobre a Insanidade.


A pressão se tornou uma tortura, mas uma tortura que não se podia distinguir de um voluptuoso prazer. O coração lhe batia violentamente e as lágrimas lhe chegavam aos olhos. Sentia-se à beira da loucura, mas sabia que não ia ficar louco ao mesmo que olhava para aquela nova paisagem mental da demência com o mesmo espanto e arrebatamento com que olhava para o passado, para o lago, para o céu. Aqui também tudo era encantado, harmonioso e cheio de sentido. Compreendia por que no espírito de alguns povos nobres a loucura era tida como sagrada. Compreendia tudo, tudo lhe falava e tudo lhe era revelado. Não havia palavras para isso; seria falso e inútil querer pensar ou compreender alguma coisa em palavras! Devia-se apenas estar com o espírito aberto e ficar preparado; podia-se então receber todas as coisas num interminável desfile como o da Arca de Noé; possuía-se tudo, compreendia-se tudo e a tudo ficava unido.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

autor desconhecido


Somos diferentes, tu e eu.
Tens forma e graça
e a sabedoria de só saber crescer
até dar pé.
En não sei onde quero chegar
e só sirvo para uma coisa
- que não sei qual é!
És de outra pipa
e eu de um cripto.
Tu, lipa
Eu, calipto.

Gostas de um som tempestade
roque lenha
muito heavy
Prefiro o barroco italiano
e dos alemães
o mais leve.
És vidrada no Lobão
eu sou mais albônico.
Tu,fão.
Eu,fônico.

És suculenta
e selvagem
como uma fruta do trópico
Eu já sequei
e me resignei
como um socialista utópico.
Tu não tens nada de mim
eu não tenho nada teu.
Tu,piniquim.
Eu,ropeu.

Gostas daquelas festas
que começam mal e terminam pior.
Gosto de graves rituais
em que sou pertinente
e, ao mesmo tempo, o prior.
Tu és um corpo e eu um vulto,
és uma miss, eu um místico.
Tu,multo.
Eu,carístico.

És colorida,
um pouco aérea,
e só pensas em ti.
Sou meio cinzento,
algo rasteiro,
e só penso em Pi.
Somos cada um de um pano
uma sã e o outro insano.
Tu,cano.
Eu,clidiano.

Dizes na cara
o que te vem a cabeça
com coragem e ânimo.
Hesito entre duas palavras,
escolho uma terceira
e no fim digo o sinônimo.
Tu não temes o engano
enquanto eu cismo.
Tu,tano.
Eu,femismo.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

curva do rio sujo


Tomamos o rumo da ponte para novamente atravessarmos o rio. El Pan e Nemecek pedalavam com fúria as bicicletas, deixando o ar azul à sua paisagem, e eu vacilava, sentado na barra-forte da monark de Huckleberry Finn, enquanto uma chuva fina começou a cair. As gotas explodindo no asfalto da ponte eram pequenos sóis morrendo junto comigo e o final da tarde então parecia apenas o fim de tudo e não mais o monstro ensolarado e infinito de outras vezes. Quando o inimigo deu as caras à nossa espera, do outro lado, nossas bicicletas já levitavam a alguns centímetros do chão. Eu olhei para a superfície do Apa e disse a Huck: "Isto é o meu Mississipi, estes quintais de Bella Vista são os quarteirões de Budapeste para mim, mi viejo!". – Ele gargalhou e pedalou com mais vigor ainda e então pude vê-la, Basano La Tatuada, com seu chocalho de cascavel vibrando altíssimo, tão alto quanto meu coração trepidava sob as areias da margem do rio, e do buraco em meu peito saíam avencas e samambaias e o som de águas barrentas, cascatas nas pedras, os pintados e as sucuris jorrando com o manancial de dentro do lugar antes ocupado pelo meu coração e então mais uma vez desaparecíamos, eu e meus amigos em nossas bicicletas, presos àquele momento se repetindo eternamente, arrancados deste instante sem saída assim como meu coração foi me tirado sem piedade alguma no dia de nossa mais retumbante derrota, quando ainda vestíamos orgulhosos nossos uniformes azuis e a lâmina das espadas refletia o inimigo paraguaio em nosso encalço, para sempre vítimas de sumirmos por inteiro vem às vésperas de uma remota chance de vitória ou de felicidade, meu coração movendo a correnteza do rio e do tempo rumo são infinito.